À primeira vista, a peça parece ser sobre problemas mentais, sobre a dificuldade e renitência que as pessoas têm em assumirem problemas mentais, e a relação que estabelecem com o tratamento. Mas depois percebemos, quando começamos a visitar as profundezas do texto do autor escocês, que O Maravilhoso Mundo de Dissocia é uma peça poderosa que põe em confronto dois mundos aparentemente opostos mas inevitavelmente concorrentes e interdependentes: o mundo de Dissocia, fantasioso, sustentado pelo absurdo quotidiano, projectando fantasmas, alegorias, cores, sons, e o mundo real regrado pela sua dose de sobriedade, normalidade, comprimidos e prazos.
Estes dois mundos correspondem, no teatro, tanto a dois níveis de representação como a duas atitudes. De grosso modo: a do público e a dos actores e músicos É através desta relação dinâmica que se chega àquilo que se chama “espectáculo”. Pelas características da construção dos textos de Anthony Neilson (que os escreve durante os ensaios com a colaboração dos actores) reconhecemos que essa preocupação está constantemente presente no texto proposto pelo autor. Ele quer manter com o público uma relação directa, simples. Neilson diz em entrevistas, “É preciso não aborrecer o público.”
A relação está presente nas indicações cénicas, onde propõe a primeira cena à frente do pano de boca (mais próximo do real com o público), no resto das cenas do primeiro acto dentro do palco (fazendo uso de toda a maquinaria de cena, etc) e ainda na indicação precisa e ao mesmo tempo livre (dados os constrangimentos orçamentais de todos os teatros) do cenário da segunda parte (com a sua caixa transparente), onde a cor branca predominante contrasta com o “fogo-de-artifício” multicolor da primeira parte.
É uma meditação sobre dois mundos que habitamos constantemente: o mundo das regras e o mundo da fantasia, ou o mundo do teatro e o mundo do real, ou, o mundo da palavra e o da música, ou o mundo dionisíaco (tal como Nietzsche o pensou) e o mundo apolíneo da razão ponderada e grega.
Anthony Neilson lança-nos assim para as mãos, através da sua imaginação delirante, um texto que precisa de ser jogado em todas as suas dimensões cénicas. Seja a nível de figurinos, cenário, seja de sons e iluminação, seja a nível da representação dos actores, o público deve ter a noção, no final, de que viu dois lados da mesma moeda. E que se dispôs a ver o II Acto, extremamente realista, com a sua cama de hospital e ambiente frio, tendo ainda na retina e na cabeça o delírio do I acto. É este o confronto que Neilson nos propõe.
Nas suas outras peças, Neilson ficou conhecido pelo grafismo violento, as relações sexuais, os órgãos genitais cosidos, a coprofagia, os diálogos secos, quase hiper-realistas, baseados num trabalho de texto, próximo da emoção da narrativa, mas não da exposição. Aquilo que distingue Anthony Neilson dos outros escritores de língua inglesa da sua época, Mark Ravenhill, Sarah Kane, é que as suas personagens pensam mais nelas e muito raramente se sente a voz do autor através daquilo que dizem.
Os textos de Anthony Neilson ligam-se ao acto de fazer teatro e não a uma produção intelectual organizada antes do palco ou do trabalho com os actores. É um processo caótico (como ele o descreve) mas também orgânico que ecoa na frescura dos espectáculos que dirige.
É essa dialéctica público/cena que propomos trabalhar quando mergulharmos no Mundo de Dissocia. Sem perder a frescura da escrita e procurando perceber as propostas cénicas do autor. Modificando-as, adaptando-as ao nosso mundo português, mas nunca as traindo.
Para isso a música desempenhará um papel extremamente importante no nosso espectáculo. Luísa abre a peça a partir a corda de uma guitarra, é como se a música a partir daí irrompesse pela vida do palco a dentro e a arrastasse com ela. Luísa é puxada para dentro de cena pelo doutor suíço até ao fim do primeiro acto quando reconhece Vasco como o Rei Cão Preto.
No segundo acto, o silêncio é a regra, para além do ruído ocasional de passos no corredor. Será um silêncio reconfortante ou uma tortura humilhante baseada na rotina diária de tomas de medicamentos? Que vida vivemos nós longe dos mundos que criamos nas nossas cabeças? Que mundos são esses? Que dissociação temos de conciliar diariamente para manter a nossa sanidade mental?
Pedro Marques
Estes dois mundos correspondem, no teatro, tanto a dois níveis de representação como a duas atitudes. De grosso modo: a do público e a dos actores e músicos É através desta relação dinâmica que se chega àquilo que se chama “espectáculo”. Pelas características da construção dos textos de Anthony Neilson (que os escreve durante os ensaios com a colaboração dos actores) reconhecemos que essa preocupação está constantemente presente no texto proposto pelo autor. Ele quer manter com o público uma relação directa, simples. Neilson diz em entrevistas, “É preciso não aborrecer o público.”
A relação está presente nas indicações cénicas, onde propõe a primeira cena à frente do pano de boca (mais próximo do real com o público), no resto das cenas do primeiro acto dentro do palco (fazendo uso de toda a maquinaria de cena, etc) e ainda na indicação precisa e ao mesmo tempo livre (dados os constrangimentos orçamentais de todos os teatros) do cenário da segunda parte (com a sua caixa transparente), onde a cor branca predominante contrasta com o “fogo-de-artifício” multicolor da primeira parte.
É uma meditação sobre dois mundos que habitamos constantemente: o mundo das regras e o mundo da fantasia, ou o mundo do teatro e o mundo do real, ou, o mundo da palavra e o da música, ou o mundo dionisíaco (tal como Nietzsche o pensou) e o mundo apolíneo da razão ponderada e grega.
Anthony Neilson lança-nos assim para as mãos, através da sua imaginação delirante, um texto que precisa de ser jogado em todas as suas dimensões cénicas. Seja a nível de figurinos, cenário, seja de sons e iluminação, seja a nível da representação dos actores, o público deve ter a noção, no final, de que viu dois lados da mesma moeda. E que se dispôs a ver o II Acto, extremamente realista, com a sua cama de hospital e ambiente frio, tendo ainda na retina e na cabeça o delírio do I acto. É este o confronto que Neilson nos propõe.
Nas suas outras peças, Neilson ficou conhecido pelo grafismo violento, as relações sexuais, os órgãos genitais cosidos, a coprofagia, os diálogos secos, quase hiper-realistas, baseados num trabalho de texto, próximo da emoção da narrativa, mas não da exposição. Aquilo que distingue Anthony Neilson dos outros escritores de língua inglesa da sua época, Mark Ravenhill, Sarah Kane, é que as suas personagens pensam mais nelas e muito raramente se sente a voz do autor através daquilo que dizem.
Os textos de Anthony Neilson ligam-se ao acto de fazer teatro e não a uma produção intelectual organizada antes do palco ou do trabalho com os actores. É um processo caótico (como ele o descreve) mas também orgânico que ecoa na frescura dos espectáculos que dirige.
É essa dialéctica público/cena que propomos trabalhar quando mergulharmos no Mundo de Dissocia. Sem perder a frescura da escrita e procurando perceber as propostas cénicas do autor. Modificando-as, adaptando-as ao nosso mundo português, mas nunca as traindo.
Para isso a música desempenhará um papel extremamente importante no nosso espectáculo. Luísa abre a peça a partir a corda de uma guitarra, é como se a música a partir daí irrompesse pela vida do palco a dentro e a arrastasse com ela. Luísa é puxada para dentro de cena pelo doutor suíço até ao fim do primeiro acto quando reconhece Vasco como o Rei Cão Preto.
No segundo acto, o silêncio é a regra, para além do ruído ocasional de passos no corredor. Será um silêncio reconfortante ou uma tortura humilhante baseada na rotina diária de tomas de medicamentos? Que vida vivemos nós longe dos mundos que criamos nas nossas cabeças? Que mundos são esses? Que dissociação temos de conciliar diariamente para manter a nossa sanidade mental?
Pedro Marques
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