Blog da produção teatral de "O Maravilhoso Mundo de Dissocia" de Anthony Neilson.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

ENTREVISTA DE MARK RAVENHILL A ANTHONY NEILSON - EU QUERO PERMANECER PURO

Já depois da nossa conversa, em Setembro de 2004, estreou no Festival Internacional de Edimburgo, The Wonderful World of Dissocia, em co-produção com o Tron Theatre e o Drum Theatre de Plymouth, com encenação do próprio Anthony Neilson e interpretação de James Cunningham, Christine Entwhistle, Alan Francis, Amanda Headingue, Jack James, Claire Little, Matthew Pidgeon e Barney Power.
Poucos dias antes, Mark Ravenhill (o autor de Shopping and Fucking e Some Explicit Polaroids) publicou no The Guardian a entrevista que aqui reproduzimos.


EU QUERO PERMANECER PURO

Estou muito perto de Anthony Neilson. O fotógrafo do The Guardian pede que nos aproximemos mais. Os nossos narizes quase se tocam e eu sinto uma necessidade súbita de o beijar. Há uma mistura de arrogância e reserva em Neilson, de desconfiança e desafio, de adolescente e de velho inteligente. É uma mistura bastante atractiva.

Quero beijar Anthony Neilson. Por isso beijo. Nos lábios. Acho que estou à espera de uma reacção, do tipo: “Afasta-te de mim, maricas.” Mas o Anthony beija-me de volta com um ar feliz. Eu estou desiludido e – enquanto a máquina fotográfica continua a disparar – considera-velmente mais constrangido que ele. Quando me afasto tento salvar a honra do convento: “Ooh, Anthony, lá se vai a tua reputação.” Ele sorri. “Achas? Sabes qual é a minha reputação?”

Eu conheci o Neilson numa sala que havia por cima de um pub em 1995. Tínhamos escrito peças para uma noite de cenas eróticas. Eu observei da cabine das luzes o Anthony a ensaiar com dois amigos. Um, vestido de Pai Natal, praticava sexo anal com o outro, cheio de ternura, vestido de fada da árvore de Natal. Era um ensaio completamente diferente daqueles que eu tinha visto até aí. Neilson estirado no chão, a beber cerveja e a conversar com os dois actores. Havia uma direcção para o texto, mas nada de particular. A certa altura deve ter tido lugar qualquer coisa como um ensaio convencional – falas decoradas, movimentos organizados – mas eu nunca vi. A principal táctica de Neilson parece ser levar os actores a fazerem parte de uma conspiração tácita. E obteve resultados. O público teve o sentimento perturbador de lhes ter sido permitido assistir a um momento íntimo. Toda a gente que tenha visto os melhores trabalhos de Neilson – Penetrador, Cicatrizes, O Censor – reconhecerá essa desconfortável mas hipnotizante sensação.
Para mim, em 1995, Neilson era um tipo muito fixe. Não foi muito depois de o ter conhecido que escrevi o primeiro rascunho daquilo que viria a ser Shopping and Fucking; Neilson dirigiu uma leitura do mesmo. Dezoito meses mais tarde, encontrei-o na noite de estreia de Shopping and Fucking no West End. “O que é isto?” Troçou ele. “O cabrão do Rocky Horror Show?” A noite tinha sido demasiado mainstream para ele. Desde aí que nos contactamos amigavelmente, dois dramaturgos com trajectórias similares – mas o Anthony insinua sempre que eu me vendi. Para o Neilson, o artista como outsider é um mito poderoso.

Encontrámo-nos outra vez em Glasgow, Neilson ensaia uma nova peça. The Wonderful World of Dissocia. A peça estreia no abastado Lyceum Theatre de Edimburgo, integrada no Festival Internacional. O que é que ele acha desta nova aproximação à respeitabilidade dos palcos principais? Ele mastiga pensativamente uns cheetos. “Eu gosto mesmo dos locais alternativos,’ admite. “Detesto fazer parte do público nesses teatros grandes. Os melhores locais são as caixas pretas pequenas. Mas como escritor não há dinheiro nos locais alternativos e – se for honesto – nem prestígio.” Sorri ironicamente. “Hoje em dia dão-me duas colunas num jornal para um punheteiro qualquer me lixar a cabeça por causa do trabalho.”

Claro, ele está a ser sardónico. Ele pode gostar de espaços pequenos, mas também possui algo de apaixonado quando partilha o trabalho com o público. “Temos de escrever peças que as pessoas queiram ver,” diz ele. “Senão, há o perigo de desaparecermos nós. Acho que se alguém que nunca foi ao teatro, por acaso entrar, devia ainda assim gostar do trabalho. Devia interessar-se pela história. Isso não quer dizer que tem de ser simplista, mas a história tem de estar no coração daquilo que o escritor faz. E aquilo que tens de fazer é equilibrar isso com qualquer coisa nova.”

Neilson raramente vai ao teatro. Não, insiste ele, por arrogância (embora mostre um pouco de uma benigna panache arrogante), mas por medo de ser demasiado influenciado por outras peças. “Eu não quero saber que não posso fazer aquilo porque aquele e o outro já fizeram. Eu quero ficar – de certa maneira – puro.” Em vez disso, é fanático por filmes, fugindo para filmes a meio da tarde. Os filmes andam muitas vezes próximos do seu amor pela história – mas ele ainda sente que o teatro, no seu melhor, é que tem a ousadia. “O filme é lento. O teatro tem a possibilidade de ser rápido, reactivo. Pode-se adicionar bocados novos todas as noites. Tem de haver coisas novas a brotar por todos os lados.”

Dissocia fumega na sua cabeça há alguns anos – mas isso não quer dizer que tenha começado os ensaios com um texto. Muitos dramaturgos, eu incluído, rescrevem e revêem constantemente durante os ensaios. Neilson trabalha de uma maneira mais radical, construindo gradualmente a peça nos ensaios. Quanto é que ele tinha de Dissocia no primeiro dia de ensaios? “Cerca de 20%.”

Não é uma maneira de trabalhar que muitos teatros gostem. Mas, enquanto Neilson percebe que teatros como o Royal Court e o National gostem de ver o texto antes de se comprometerem com uma produção, ele acha que trabalhar numa peça “durante meses a fio antes de ela ir parar a um comité qualquer” tira ousadia à peça. “Não consegues manter um nível de energia visceral que produz uma coisa como Stitching durante muitas semanas,” diz ele. “É aí que eu faço os meus melhores trabalhos.”

Dissocia é uma obra ambiciosa, uma vasta paisagem onírica com a doença mental como tema central. Neilson apressa-se logo a dizer que não é uma tentativa directa de dramatizar uma doença mental. “Isso seria ser presunçoso. Isto é mais parecido com Feiticeiro de Oz ou Alice no País das Maravilhas, algo que pode ser análogo às doenças mentais. Em muitos sentidos, é uma experiência com a forma.”

Foi a doença mental alguma coisa que ele tenha experimentado? “Sim,” admite. “Existem elementos disso na minha família. Quando há na família, isso torna-se uma coisa de que não tens medo. Torna-se aquilo que tu sabes. Se estiveres sentado num bar e entrar alguém que é obviamente doente mental, as outras pessoas tenderão a afastarem-se dele. Eu vou dizer “Tudo bem?” e acabo a ter uma conversa com ele sobre alguém que o anda a tentar matar ou coisa parecida.”

O impulso para escrever Dissocia coincidiu com um período da vida em que ele andava ‘fodido”. “Eu andava a meter muitos speeds, estava numa relação com uma pessoa que é a pessoa mas catastroficamente passada que eu conheci. Eu fui arrastado para o mundo dela. E a minha peça The Lying Kind, no palco principal do Royal Court, foi mal recebida. Houve um crítico que disse que era a pior coisa que o Royal Court já tinha feito.”

A cabeça dele ficou “em círculos. Não era exactamente depressão. Era mais esquisita.” Parou de tomar fármacos, terminou a relação e iniciou uma terapia em St. John’s Wort. Quando recuperou, começou a tentar escrever sobre as doenças mentais, tentando agarrar na sua essência ao escrever de um modo mais absurdo.

O resultado foi uma peça que faz o contraste entre o fervilhante mundo interno da mente doente e a esterilidade do mundo objectivo. Não será uma ideia romântica de doença mental? Neilson inclina-se para a frente, subitamente animado, com o seu escudo sardónico posto de parte. “Mas é verdade. Pergunta a quem quiseres. É por isso que as pessoas não tomam os medicamentos. É uma paisagem mais colorida, fervilhante. Existe muita alegria nela. Mas existem muitos pontos baixos atrofiantes e profundos. Eu não sou romântico. Acho que deves ser medicado. Não acho que o tratamento de pessoas com problemas mentais seja desumano. Mas acho que temos de admitir que as pessoas oferecem resistência a tomar os medicamentos. Eu estive lá. Eu estive na merda. E fui relutante.”

A entrevista chegou ao fim e o elenco passou o tempo a jogar voleibol, agora Neilson tem de voltar para a sala de ensaio. Beijamo-nos – desta vez na cara. “Obrigado por fazeres isto, Mark,” diz ele. “Vou fazer-te o mesmo quando estiveres sem sorte e andares a tentar promover a tua nova peça no teatro de um bar qualquer.”

Sempre o mesmo Anthony – afectividade e agressividade misturadas. Eu adoro-o. E vocês também deviam.

Mark Ravenhill, The Guardian, 26 de Agosto de 2004
Tradução de Pedro Marques


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