Blog da produção teatral de "O Maravilhoso Mundo de Dissocia" de Anthony Neilson.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O TEATRO DE ANTHONY NEILSON

Anthony Neilson nasceu em Março de 1967. A sua mãe, Beth Robens, era actriz; o seu pai, Sandy Neilson, era encenador. "Fui um bebé-de-sala-de-ensaios." A sua primeira experiência de actor foi como "miúdo num anúncio para os Caminhos de Ferro Britânicos", e "naturalmente" absorveu muito teatro dos seus pais. Tinha onze anos quando vi The Widows of Clyth de Donald Campbell no Traverse. Há um momento em que as mulheres descobrem que os seus maridos morreram no mar. Nessa altura a minha mãe soltou um grito horrendo. Eu fiquei todo arrepiado. Ela era minha mãe, por isso a força emocional que eu senti foi em duplicado."
Desde esses tempos que Neilson tem a ideia de que o teatro devia ser assim, o teatro devia exercer realmente uma força directa e muito básica. O teatro devia ser uma experiência emocional - tem de se sair do teatro a sentir alguma coisa. "Estás ali; estás com pessoas. Tens de te sentir como se estivesses a ver uma boa banda ao vivo. O teatro provocante tem de ser como o punk-rock."
Neilson estudou teatro em Edimburgo, durante um ano, antes de ir para o Welsh College of Music and Drama em Cardiff. Um dos problemas que teve foi o facto de nunca ter sido feliz como actor. "Não gostava que as pessoas me dissessem o que eu devia fazer; sempre quis pensar numa imagem mais abrangente." Por isso, dirige muitas vezes os seus próprios trabalhos. Também possui uma visão muito clara sobre o teatro experimental feito em locais pequenos - onde o público participa vivendo as emoções que são mostradas em palco e não fica apenas confortavelmente sentado a contemplar a peça intelectualmente. O desenvolvimento desse teatro experimental foi uma parte essencial da nova estética de confronto dos anos 90.
A seguir Neilson, voltou para Edimburgo e concorreu a um concurso de jovens dramaturgos na BBC. "Nunca tive nenhum interesse particular pela escrita, mas lembro-me de ter um sentimento estranho e muito nítido de que se escrevesse uma peça ela seria representada." The Colours of The King´s Rose foi radiodifundida na BBC em 1998. Em 1990 escreveu Welfare My Lovely para o Traverse. A seguir viriam mais textos e mudar-se-ia para Londres.
Neilson foi desenvolvendo a sua maneira de escrever e ensaiar. Cada vez chegava com menos coisas escritas ao primeiro ensaio. Pegava em bocados e experimentava-os com os actores e via se funcionavam. Depois reescrevia-os, rápida e intensamente. Recebiam sempre a parte final do texto muito próximo da estreia. O que é que ele conseguia com isso? "Bom os actores refreiam o temperamento da sua representação porque têm uma ideia de como a peça se vai desenvolver, e o público consegue adivinhar para onde é que a peça vai pelo modo como os actores se comportam no início."
Enquanto as sessões de trabalho normalmente duram um dia inteiro, os ensaios de Neilson duram normalmente três ou quatro horas no máximo. Isto permite aos actores descobrir a peça enquanto ela se desenvolve e permite ao autor escrever a peça como se ela fosse uma peça de roupa para os seus actores.
Neilson é daquele tipo de escritores que não gosta de submeter o seu trabalho a comités: "Há sempre uma altura em que já se reescreveu a peça até à exaustão. Perde-se a energia." Ele escreve para o momento, para ter um impacto e não para produzir um trabalho literário. A sua energia concentra-se na tentativa de contar uma história. Diz: "Assim que te ancoras numa boa narrativa, o próprio trabalho dir-te-á coisas sobre ti próprio" e continua, "Conta uma história, os temas virão por si próprios. A história é o caminho pelo qual o teu subconsciente encontra expressão no mundo real. Ao preocupares-te com as mecânicas da narrativa libertas o teu ego e permites que algo de mais verdadeiro surja."

VISCERAL E EMOCIONAL à conversa com Anthony Neilson
Em Maio de 2004, Anthony Neilson esteve connosco no Teatro Taborda. Aproveitando a reposição de Cicatrizes dedicámos um pequeno ciclo a este autor escocês lendo mais duas peças Normal – O Estripador de Düsseldorf (a primeira peça a merecer a atenção do público) e Penetrador que, juntamente com O Censor e Cicatrizes, forma um tríptico sobre as relações interpessoais. Ainda nesta ocasião encontrámo-nos para uma conversa no Hotel Internacional da famosa Rua da Betesga. Este é o resultado dessa conversa e de uma pequena apresentação pública.
O meu pai era encenador e a minha mãe actriz. Trabalhavam no teatro escocês dos anos setenta. Até essa altura não havia uma história de dramaturgia na Escócia. Havia uma ou duas peças e dois escritores que nos anos quarenta tinham escrito peças sobre os mineiros e coisas desse tipo. Eu era uma criança quando isto começou a mudar, por volta de 1974. Fazia-se um teatro muito político e não muito realista, baseado na comunidade, com digressões por toda a Escócia. Foi um tempo entusiasmante, emocional, como o são os escoceses. Bem diferente do teatro inglês. São estas as minhas primeiras memórias do teatro. Como os meus pais trabalhavam lá, eu devia ser tudo excepto uma pessoa do teatro. Houve uma altura em que era para ser biólogo marinho e várias outras coisas. Deixei a escola muito cedo, aos quinze anos, e passei uns tempos a fazer isto e aquilo, nada de especial. Quando chegou a altura de decidir que tinha de fazer qualquer coisa, fui tirar um pequeno curso para ver se gostava de ser actor. E gostei. Continuei e segui uma namorada até Cardiff, no País de Gales, para frequentar um curso de representação de três anos. Fiz o curso e passado um ano chegámos a acordo. Eu devia deixar a escola de teatro. O teatro era muito novo para as outras pessoas que iam de propósito para a escola, mas não o era para mim. Eu já trabalhava com material polémico, controverso. Tenho um problema com as instituições. Seja onde for. É instintivo, mesmo que não queira, dou comigo a rebelar-me contra elas. Por isso deixei a escola e fiquei com tempo livre para mim. Por uma razão que não compreendo completamente, decidi escrever uma peça. O que me levou a escrevê-la foi um concurso da BBC para jovens dramaturgos. Por alguma razão, tive um daqueles momentos na vida em que se olha e se sente intensamente, instintivamente, “se eu fizer isto, isto acontece”. Fi-lo e eles aceitaram. Não foi o primeiro prémio, eles escolheram quinze pessoas e produziram essas peças. Arranjei um agente e voltei para casa. O meu primeiro espectáculo foi Welfare My Lovely para o Traverse Theatre. A história era interessante, mas muito ingénua. Reescrevia muito nessa altura. Mas correu bem, arranjei um agente depois do concurso da rádio e, de repente, as pessoas começaram a pagar-me para escrever. Lentamente, fui perdendo o meu desejo de ser actor, percebi que não era um actor original.
Quando comecei a escrever teatro, apercebi-me que o teatro se tinha tornado num ramo muito cerebral das artes. E achava que o que nos ofereciam nos palcos não tirava partido das potencialidades deste género literário. Achei que os interesses dos dramaturgos eram muito classe média e quis criar peças que afectassem as pessoas de forma visceral e emocional. E que pudessem ser processadas intelectualmente apenas mais tarde, no bar. Era isso que pretendia fazer.

Não vi muita diferença entre escrever e encenar
O que eu gostava era de dirigir as minhas próprias peças. Ainda não tinha formulado isso na minha cabeça nessa altura, então, voltei para Cardiff e montei Normal
para apresentar no Festival de Edimburgo. Foi um sucesso junto da imprensa e isso trouxe-me alguma atenção. Desse ponto em diante fui considerado um escritor e passei a ser pago para escrever. Mas há alguma pressão para que os escritores não dirijam as suas próprias peças porque há muitos encenadores e a percepção, de certo modo, de que não há muito boas peças ou dramaturgos. Se é verdade ou não, não sei. É do interesse deles, manterem-nos num lugar preciso. Os encenadores querem peças para encenar e é um pouco desarmante para eles quando se decide ser dramaturgo e também encenador. Não é raro, mas é difícil, porque é como um pacote que as pessoas têm que levar. As companhias mais pequenas assumem melhor esse risco.
Nunca vi muitas diferenças entre escrever e encenar, uma coisa é a extensão da outra. Contudo, conheci dramaturgos que nada têm de encenadores e encenadores que nada têm de dramaturgos. Penso que há um traço psicológico especial para se ser dramaturgo e encenador, o que envolve duas partes bem distintas da personalidade.
A minha parte emocional, penso que a herdei da minha mãe (ela era quase pura emoção e instinto enquanto o meu pai era mais frio e desligado); de certo modo sinto que é o meu lado materno que escreve e o meu lado paterno que dirige. Gostaria de ver as minhas peças como um todo. Por outro lado, não gosto de me expressar pelo diálogo, não gosto que as pessoas sintam que o diálogo vem do escritor, quero que as pessoas acreditem que o diálogo vem dos actores. Acho que tenho um nível de representação que não é habitual num escritor, estou dentro daquilo de alguma forma. Sou contra a ideia de uma escrita poética auto-consciente. Mas costumava praticá-la e há uma parte de mim que ainda o faz, e que escolhe momentos concretos para o fazer. Em certos pequenos monólogos às vezes uso voz off. Mas na verdade não gosto de ouvir poesia evidente a sair da boca dos actores.
Acho que o teatro pode ser uma coisa muito irrealista, mas a representação, para mim, tem que ser verosímil, e o diálogo tem que soar verosímil. Devemos apanhar formas em que as pessoas são acidentalmente poéticas. A desarticulação interessa-me muito mais do que a articulação, o que nem sempre parece acontecer. Não quero alguém sentado a pensar sobre as linhas de construção do autor. Acho que há demasiado disso no teatro britânico.
Penetrador foi um projecto muito especial, parcialmente baseado na realidade e foi também a última vez que representei. Representava com dois amigos meus que conheciam a pessoa que inspira a personagem Piça, por isso o texto está cheio de piadas privadas. Mais uma vez acho que há um desejo do dramaturgo de dirigir as peças que escreve. Senti que a pessoa deve abraçar a efemeridade do teatro, o encenador é o que torna aquilo diferente, é o que torna tudo “como a vida”.
Há muita coisa no teatro que acho que as pessoas vêem como inconveniente, como se desejassem que aquilo pudesse ser montado de certa maneira, ficam frustradas pelo modo como o teatro é diferente do cinema. Eu acho que é muito livre. Por isso escrevo peças, as minhas peças têm muitas referências internas, o que as torna muito imediatas para o público. Às vezes há coisas que nem aparecem nos textos. Se têm que abrir uma janela para se ouvir o trânsito, se ligam o rádio durante a peça, coisas que façam as pessoas sentirem que é tudo muito imediato. É por isso que Penetrador é um texto escrito para ser produzido e não um texto fechado. Nunca pensei que Penetrador fosse uma peça que pudesse vir a ser representada, sempre pensei que fosse uma daquelas que desaparecem. É claro que o nosso amigo George W. Bush conspira para manter a relevância de alguns elementos. Depois, as outras partes encontram-se dentro do texto, as pessoas têm que encontrar as piadas internas, tem que haver um sentido de ligação à realidade.
No caso de Penetrador, acho que, se se fizesse uma produção aqui, ela se devia transformar numa peça portuguesa. Todas as personagens. Principalmente o Piça. O nome dele tem qualquer coisa a ver com o tema da peça.
Não tenho nenhum controlo sobre as produções das minhas peças porque as escrevi e dirigi na primeira produção. Depois digo-lhes adeus e tudo o que as pessoas quiserem fazer delas... talvez devesse deixar mais claro em futuras publicações quanto podem as pessoas fazer o que querem do texto. Têm absoluta liberdade de fazer o que quiserem desde que não interfira com o clima básico do espectáculo. Mais uma vez acho que o teatro deve ser uma coisa viva e que as pessoas devem levá-lo adiante. Tenho que confiar nas pessoas para mudarem e adaptarem o que for preciso. Talvez haja produções que sejam más, mas haverá outras que serão muito boas. Tentar controlar isso é como evitar os riscos da vida, seria evitar o teatro. Há muita pressão quando se trabalha para companhias maiores, incluindo o Royal Court – querem que se faça audições e se escolham actores assim... há uma série de razões para isso.

Trabalho de um modo caótico
O modo como trabalho é muito caótico, muito enervante para algumas pessoas e preciso de perceber isso, há pessoas que confiam em mim e percebem o que estou a fazer. Mas também preciso usar o meu conhecimento sobre estas pessoas para me ajudar na própria peça. Não improviso com as pessoas. Trabalhamos como nas sessões de psiquiatria, de certo modo, falamos sobre a história, a personagem, mas, se por acaso, estamos a falar de como a personagem foi para escola, transformo-a na escola dos actores. Se a ideia é mentir, mantemo-nos tão próximo da verdade quanto possível. Eu tento, tanto quanto eles deixam, usar o máximo da história pessoal dos actores, assim sinto que há uma verdadeira fusão entre o actor e a peça.
Uma das razões porque não recorro às audições é porque sou particularmente sensível aos actores que se apresentam para representar nas audições. Como os meus pais trabalhavam no teatro, nós éramos bastante pobres a maior parte do tempo. Se o meu pai ia procurar um emprego e não o conseguia nós ficávamos com um problema. As contas ficavam por pagar, o telefone, a electricidade eram cortados. Sou mais sensível a perceber o que pode acontecer a um actor que não arranja um trabalho. E dou um emprego a um actor se percebo que ele precisa, psicologicamente, desse emprego. Porque eles são meus amigos. Isto não é profissional, percebo isso, e há uma parte de mim que diz que eu devia antes ser um bom ser humano, mais do que um bom profissional de teatro. Mas não recrutaria uma pessoa que estivesse completamente errada por causa do meu método. Posso ser muito livre, posso pensar, ele não é bem a personagem que eu procuro, mas depois a personagem transforma-se no que eles são, em quem eles são. Isso dá à produção um sentido imediato e representa-se uma coisa a que sozinho nunca teria chegado. É difícil continuar a descobrir novas personagens e escrever vozes diferentes.
Normalmente, começo com uma ideia. Trabalhando como trabalho é óptimo que eu tenha parâmetros que me sejam dados, dizem-me: “nós queremos trabalhar nesta área, ou complementar esta peça” e tenho uma ideia. Às vezes, não tenho uma ideia, tenho muitas ideias, mas se ao fim de três anos ainda estou a pensar nelas, começa a ser tempo de fazer qualquer coisa. Se tenho uma ideia que me parece fantástica, um ano depois ou mais tarde já não me parece tão fantástica. Normalmente sei onde começo e onde vou acabar. E o fim surge-me muito rapidamente. A parte do meio é que não sei bem como será. Escrevo o mais que posso, uma cena, duas cenas, três cenas. Depois, encontro-me com os actores, falo-lhes das minhas ideias, oiço o que têm a dizer, lêem as cenas que temos e eu oiço-os. No início do processo tento perceber onde é que as personagens se cruzam com os actores, o que é que é preciso mudar, o que me parecem ser as partes do discurso, o que me parecem ser as boas acções, se é mais cómico ou mais dramático, é tudo muito flexível. Parece um pouco estúpido. Parece que uso um actor naquilo que sei que ele faz bem, mas de facto, nem sempre é verdade. Normalmente é um actor que conheço bem e sei que é muito bom e há coisas específicas que gostava de o ver fazer, coisas muito emocionais ou não, dependendo do seu comportamento. O mais importante é que isso me permite fazer parte do público. Acho que o que acontece é que nunca me deixo envolver demasiado no mundo do teatro. Não me associo demasiado às pessoas que trabalham no teatro, não vou às festas nas estreias, não vejo muito teatro. Não quero transformar-me num daqueles dramaturgos que escrevem sobre a escrita ou sobre o teatro. Sou uma presença muito marginal no teatro britânico. Considero-me muito populista, o que me permite fazer parte do público e ouvi-los. E cultivei um modo de ser muito mau público. Com uma capacidade de concentração muito baixa. Aborreço-me muito, sento-me ali e penso: o que é que me empolgaria realmente?, o que é que eu gostava de ver agora?, precisamos de mais humor aqui, precisamos de música aqui. A pouco e pouco, a coisa constrói-se, vou para casa, reescrevo, volto, falamos sobre isso. Eles transformam-se no meu público, e eu sou o deles. Falamos da história das personagens, caminhos possíveis. Sou sempre eu que chego ao diálogo, mas há algumas deixas no espectáculo que podemos dizer “este actor, chega a esta fala a certo ponto”. Crio uma atmosfera em que as pessoas sentem que podem divertir-se e brincar com o texto. É um pouco infantil. Mas de uma forma geral, sou eu que escrevo o diálogo. De um modo geral sou plano, sem forma, sou suficiente imediato para querer que uma coisa seja minha.

Pessoas que conheço
O que não consigo é trabalhar com pessoas que nunca vi. Por isso recruto pessoas que conheço. Não têm que ser meus amigos, podem ser amigos de amigos meus, ou pessoas que eu tenha visto. Mas o processo cria isso, muitas vezes eles só têm a versão final a dois ou três dias da estreia. Eles estão envolvidos. Na Grã-Bretanha temos uma forma muito rígida de trabalhar, das dez às seis, seis dias por semana, e apenas duas horas por dia são boas. É preciso aproveitá-las. Se sinto que nada está a acontecer deixo as pessoas sair mais cedo, vamos beber um copo e falar, divertimo-nos. Eles andam muito nervosos e há sempre um momento em que os actores perdem a confiança em mim e me odeiam, pensam “será que isto alguma vez vai acontecer?”. Disto resulta que sentem que fizeram mais do que concentrarem-se apenas no seu papel. Torna-se tudo, não diria uma grande família, mas… em toda a gente há um sentimento de pertença e de intimidade. Deixo os actores escolherem o seu nome, dou-lhes o que posso, pequenos pedaços de propriedade sobre a peça, todos dão a sua opinião, todos são livres de colocar objecções.
Já vi algumas encenações de peças minhas por outras pessoas. Há pessoas de quem digo que não devem dirigir as minhas peças. E os críticos usam isso como arma de arremesso. Se se escreve um texto é preciso uma cabeça fresca para o dirigir. Já vi muitas produções, em que me senti eu próprio e em que vi o meu trabalho ser levado para novas áreas. Quando vou à Alemanha ou à Áustria e vejo que fizeram algo muito radical com uma peça, normalmente acho essas produções interessantes e divertidas, mas sinto que não funcionaram. Sou um escritor britânico, as minhas peças são muito explícitas, mas num ambiente britânico. Na primeira parte são muito contidas. É como numa situação de comédia, ou drama, que depois explode: o conforto britânico é esmagado pelo que acontece. Em Penetrador, quando num momento de tensão, o Alan interrompe para dizer “vou fazer uma chávena de chá”, na Grã-Bretanha isso provoca gargalhada. Tudo pára se se fizer chá, há um sentido inglês e um sentido escocês. Em muitas peças há um sentido inglês interrompido por sentido escocês. A parte sexual também é um novo elemento. Se formos à Alemanha, toda a gente estará despida, não há tensão entre a forma e o conteúdo, para eles não sou suficientemente radical, eles querem que seja mais radical. O Pedro aqui em Portugal por exemplo foi por uma via muito minimalista, não há música…

A música
Nas minhas produções, a música é muito importante. É talvez a maior diferença quando vejo outras produções. Acho que há uma parte de mim que inveja o poder da música, penso na música como o chique e as palavras como o parente pobre. A música articula o que não é articulável. Há uma palavra japonesa que não tem tradução e significa tristeza da morte inevitável das coisas. Especialmente Penetrador e Cicatrizes são peças que para mim são preparações para momentos de música, que expressam esta coisa básica. O momento em Penetrador em que o Piça diz “ gostava de ir a tua casa” e eles estão sentados a comer caramelos para mim é o resumo da peça. As pessoas não fazem mal em não pôr música… não ponho isso no texto, não sinto esse direito. A razão porque resultou em Inglaterra é porque tenho um determinado público. Não posso especificar o tipo de música, seria ridículo aqui. Prefiro dar-vos a peça a dizer “ponham uma música romântica aqui”. Um dia serei ainda menos director de cena. Um texto é como um enigma. Há pessoas que me enviam e-mails sobre coisas específicas. A umas respondo, a outras não, digo simplesmente “isso terá que descobrir, não posso dizer-lhe como”. Às vezes uso música nos ensaios que depois deixo cair. Depende, porque a música aparece muito devagar. Em Penetrador, por exemplo, a cena em que eles dançam, quando a fizemos não sabíamos onde íamos dar. Às vezes mantenho a música, para apoiar os artistas. São momentos muito bons quando a música resulta. Sei que há pessoas que rejeitam o meu uso da música porque acham que é manipulador.
A música aparece-me naturalmente em determinado momento, penso “e se tocasse isto?”. Gosto que a música faça coisas por mim para eu não ter que as fazer verbalmente. Odeio o uso da música nas mudanças de cena.
Às vezes parece um musical, mas na verdade, são momentos para o público pensar. No momento em que ele se deita para ouvir música, nós usámos a música mais romântica que conseguimos encontrar, a Barbara Streisand com o Bryan Adams, mesmo foleira, mas aparece a seguir à fala sobre Auschwitz. As pessoas vão ter que pensar sobre aquilo. Primeiro conseguíamos ouvir o público respirar fundo, mas depois temos que fazê-lo pensar sobre tudo aquilo. Há um realizador britânico que admiro bastante, Terence Davies, que fez um filme chamado The Long Day Closes, que tem uma sequência de dois minutos com uma carpete e sobre ela a luz que muda, é muito Tarkovsky. Pensei ‘se se consegue fazer isto no cinema, também o devia fazer no teatro’. O que os filmes de Terence Davies fazem é permitirem que se pense. A música ajuda a fazer emergir a pressão na peça.
Não pensem que isto é uma crítica ao espectáculo do Pedro, pelo contrário. Não esperava e ficaria muito surpreendido se visse uma produção de Cicatrizes
com aquelas músicas. Na realidade, ficaria muito desiludido.
A música é mesmo importante para mim, quando escrevo procuro o lugar da música. Ajuda-me muito se encontro uma música que transmite o ambiente que quero. Pode ser apenas uma frase musical. Mas é mais importante do ponto de vista da direcção do que da escrita.
Fui músico durante uns tempos e o que pensava era que enquanto público não iria a uma actuação minha nem a uma peça em que fosse actor. Mas iria provavelmente ver o que faço no teatro. Quando digo especial é porque acho que o que faço mais ninguém faz na Grã-Bretanha. Não tem a ver com o processo, mas com o produto. Há coisas que faço que as outras pessoas não fazem. Não é melhor nem pior, sinto uma validação. E se parasse deixava qualquer coisa com a minha marca.

Política
Penetrador foi uma peça muito pessoal. Eu tinha um amigo em que a peça se baseia, que foi para o exército e veio a minha casa precisamente com esta história sobre os penetradores. Excepto que ele não disse que o pai era o Norman Schwarzkopf. Ele disse-me que o pai dele era na verdade um dos membros do elenco original de “Hello Dolly”, que tinha conhecido a minha mãe, tinha dormido com a minha mãe, e que por isso era meu meio-irmão. Além disso, dizia ele, a outra meia-irmã era uma cantora escocesa chamada Sheena Easton, e a razão porque o sodomizavam era para fazer chantagem com a Sheena Easton. Foi o que ele me disse. Antes de ser dado como desaparecido. Quando ele falou da Sheena Easton e de Hello Dolly, é óbvio que não acreditei nele. Mas, se um amigo te aparece em casa e começa a contar estas coisas sobre os penetradores, ficas de pé atrás. E a coisa mais interessante é que com as fotografias recentes que saíram da prisão de Abu Ghraib, chegamos a pensar por um momento que se calhar havia alguma verdade naquele relato. Mas ainda não sei se havia ou não. Interesso-me muito pela política, mas não gosto de teatro político.
Não me sinto com capacidade para ensinar. O principal problema parece ser as pessoas dizerem “quero fazer uma peça sobre o racismo”, sei o que querem dizer… há uma data de coisas sobre as quais gostaria de fazer peças, mas não tenho uma história. Acho que o caminho que levamos é muito perigoso no sentido em que gostamos de acreditar politicamente numa série de coisas que não são necessariamente assim. Podemos dizer que não somos racistas, que não somos sexistas, que não aprovamos isto ou aquilo. Mas seremos assim tão correctos quanto pensamos? Se começamos com uma ideia política, é o nosso ego que escreve a peça. Não podemos ter a certeza de que não estamos a projectar qualquer coisa nossa que é uma mentira. Por isso, tento começar por uma história e tento concentrar-me nas personagens a escrever a história. Assim as personagens começam a falar contigo. Tento criar o mínimo de censura interna, a da pior espécie, porque nós preocupamo-nos que as pessoas pensem que pensamos desta forma. Quando escrevi O Censor, alguém disse “mas não concordo com as peças do Neilson”. Não concordo com a ideia dos escritores como políticos sem currículo que apresentam uma tese. Não é a minha tese, é a tese das personagens. Quando as pessoas dizem que sou honesto não é por denunciar a homossexualidade no exército em Penetrador. Essas coisas são muito mecânicas, nunca se saberá de que forma um autor é honesto. Mais facilmente assumo a tese do racismo do que contra o racismo, acho mais interessante uma peça que diga porque é que hei-de ser racista do que uma que diga porque não devo ser. Sei que não devo ser. Todos os que forem ver a peça sabem que não devem ser racistas, prefiro encontrar onde é que as pessoas são racistas. Acredito que quando escrevemos de forma moralista, forçamos os espectadores a fazerem um “bypass” ao seu intelecto. Por exemplo, o discurso de abertura de Penetrador, que é tão chocante na Grã-Bretanha como é noutro lado qualquer, foi pensado para tornar mais “tenro” o público, de forma a que as pessoas ficassem tão moralmente envolvidas que não pudessem intelectualizar o processo e fossem forçadas a aceitar a narrativa tal como ela acontece. Acho que é uma utilização válida de tácticas de choque. Embora não a tivesse utilizado se não sentisse que era uma estratégia intrínseca ao tema da peça. Os políticos esquecem-se, mas a política é sobre a emoção das pessoas. Por outro lado, não posso escrever alguma coisa que não seja político nesse sentido. Pode ser sobre a política sexual ou a política das relações, mas uma visão política acaba por vir sempre à superfície. É o que o David Hare faz, quando escreve sobre a forma como os comboios foram privatizados. Para mim, isto é material que está bem para colunas de jornal, mas que pode ser mais bem feito noutras formas. Só que, a menos que exista uma estrutura dramática forte, pode soar como o Ken Loach. Às vezes pode acertar-se em cheio, como quando ele foca as histórias nas pessoas, outras vezes é completamente ao lado.

Raça de Mentirosos
The Lying Kind que escrevi em 2003 foi um dos meus maiores falhanços, e ao mesmo tempo uma das coisas mais radicais que alguma vez fiz. É curioso para mim que um teatro como o Royal Court não me deixe trabalhar da maneira que quero. Acho o teatro uma das grandes artes democráticas. E se há uma forma de arte que devia ser acessível às pessoas, era o teatro. Porque são precisas apenas algumas pessoas dispostas a fazê-lo e uma quantia que permita montar um espectáculo. E podem-se transmitir, assim, mensagens políticas muito concretas. Historicamente, creio que houve uma tentativa concertada, levada a cabo pela elite da sociedade, a classe média superior, no sentido de raptar o teatro e afastar as pessoas comuns da sua fruição. Na Grã-Bretanha, a estratégia resultou e agora, ironicamente, estão desesperados a tentar encontrar formas de recuperar esse público perdido. Mas os meus problemas surgiram sobretudo porque não me deixaram trabalhar da maneira que eu pretendia. Obrigaram-me a escrever como um escritor normal, sentar-me a escrever durante um certo número de meses. Mas só consigo sustentar o tipo de visceralidade que utilizei em algumas peças, como Cicatrizes, se escrever num período de semanas. Porque preciso de me magoar, literalmente, ao escrever aquelas coisas. Se prolongar a escrita para uma escala de meses, não resultaria da mesma forma. O que aconteceu é que acabei por fazer uma peça no Royal Court e tanto o público como a crítica odiaram-na. Fui demasiado ambicioso: tentei fazer uma peça para um público que não vai ao Royal Court. Ao princípio, os públicos misturaram-se, mas a coisa não durou muito tempo. Havia um público para a peça, só que não tivemos tempo suficiente para o fixar. Foi uma experiência muito interessante e aprendi muito com ela. Mas a verdade, por outro lado, é que um falhanço deste tipo nos transforma em persona non grata. Sou relativamente cínico em relação ao apoio que recebem instituições deste tipo e fico aliviado por poder sustentar, também nas suas consequências, as escolhas que vou fazendo. Não deixa de ser irónico que me tenham dado um prémio de autor “mais promissor” por causa de Cicatrizes. Sobretudo porque depois há críticos que insistem que ainda não consegui desenvolver plenamente o meu potencial e que me circunscrevo a temas demasiado fechados. Sei bem o que eles querem que eu faça. Querem que escreva peças maduras. E acho que isso quer dizer peças sem porcarias e palavrões. Os críticos gostaram mais de O Censor porque acharam que havia ali um debate sobre a censura. O que me agrada na peça, e os desespera, é que deitei fora o debate a meio da peça e transformei-a numa história de amor. Só me preocupei em levantar algumas questões. Mas não lhes quis responder. Por que raio me havia de dar a esse trabalho?

Depoimento recolhido por Pedro Marques, Francisco Frazão e Jorge Silva Melo a 24 de Maio de 2004.

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